Skip to content

O fim da cidadania italiana

O dia 28 de março de 2025 foi marcado por dois grandes terremotos: o primeiro, ocorrido em Myanmar, e o segundo poderia ser chamado de “terremoto Tajani”, ocorrido no centro de Roma e que está sendo chamado de “o fim da cidadania italiana” para os ítalo-descendentes ao redor do mundo, especialmente na América Latina.

O decreto-lei nº 36 alterou de maneira extremamente drástica e repentina o direito de milhões de ítalo-descendentes, valendo a partir daquele momento e impactando o planejamento de pessoas e famílias inteiras que estavam com planejamento de fazerem seus processos na Itália ou entregarem seus documentos ao Consulados, ou mesmo, transcrever os documentos de seus filhos recém-nascidos.

Abaixo, o vídeo da entrevista do ministro explicando concedida na mesma data, que trata resumidamente o assunto:

Efeitos do Decreto Tajani

Um decreto-lei na Itália é um instrumento legislativo previsto pela Constituição italiana, utilizado pelo governo em situações de urgência ou necessidade extraordinária. Ele está regulamentado pelo artigo 77 da Constituição e funciona da seguinte maneira:

  • Emissão pelo Governo: O decreto-lei é adotado pelo Conselho de Ministros e assinado pelo Presidente da República. Ele é emitido em casos de “necessidade e urgência extraordinárias”, permitindo que o governo haja rapidamente sem passar pelo processo legislativo ordinário no Parlamento.
  • Efeito Imediato: Após sua publicação no Gazzetta Ufficiale (o diário oficial italiano), o decreto-lei entra em vigor imediatamente, tendo força de lei. Isso significa que ele pode alterar, suspender ou introduzir normas legais desde o momento de sua publicação.
  • Prazo para Conversão: O decreto-lei tem caráter temporário. Ele deve ser apresentado ao Parlamento (Câmara dos Deputados e Senado) no mesmo dia de sua publicação para ser convertido em lei. O Parlamento tem até 60 dias para aprová-lo ou rejeitá-lo. Se aprovado, torna-se uma lei ordinária; se rejeitado ou não votado dentro desse prazo, o decreto-lei perde eficácia retroativamente, como se nunca tivesse existido. Aguardemos até 27 de maio de 2025, mas é bem provável que seja convertido em lei.
  • Possibilidade de Emendas: Durante o processo de conversão, o Parlamento pode modificar o texto original do decreto-lei, introduzindo emendas. Isso reflete o controle legislativo sobre a ação do governo.
  • Limitações: O uso de decretos-lei é restrito a situações excepcionais. O Presidente da República pode se recusar a assiná-lo se considerar que não há justificativa de urgência ou se o conteúdo violar a Constituição. Além disso, a Corte Constitucional pode ser chamada a julgar a legitimidade de um decreto-lei, caso haja controvérsia.
  • Prática Comum: Na prática, os decretos-lei são amplamente utilizados na Itália, às vezes até para questões que não parecem tão urgentes, o que já gerou debates sobre o abuso desse mecanismo e a necessidade de reformas, algo muito parecido com as nossas medidas provisórias, não é mesmo?

Portanto, a partir deste momento, a administração pública italiana (consulados, embaixadas e comunes) está vinculada a este decreto e não irá processar novos pedidos de cidadania nos termos antigos, bem como estão cancelando agendamentos para apresentação de documentos dentro daqueles parâmetros.

Mudanças trazidas pelo Decreto Tajani

Limite de gerações

O decreto estabelece que a cidadania italiana só poderá ser transmitida automaticamente até a segunda geração, ou seja, até os netos de um cidadão italiano nascido na Itália. Isso significa que o ancestral italiano (o chamado dante causa) deve ser, no máximo, um avô do requerente para que o direito seja reconhecido sem condições adicionais.

Bisnetos poderão ainda ter direito em duas situações específicas: caso tenham nascido em território italiano ou caso o pai ou mãe cidadão italiano não nascido na Itália tenha residido na Itália por dois anos, se estes bisnetos tiverem nascido no exterior.

Centralização de pedidos

Os Consulados e Comunes estão impedidos desde já de processarem novos pedidos de cidadania italiana ius sanguinis, que deverão ser feitos a partir de um escritório centralizado ligado ao Ministero degli Affari Esteri (Ministério dos Assuntos Exteriores), o que não faz muito sentido, dado que este tema é tratado por padrão pelo Ministero dell’Interno (Ministério do Interior).

Este novo escritório não tem nome, nem data certa para começar a funcionar e estima-se que deverá demorar ao menos um ano para começar a operar. Até lá, mais demanda represada será acumulada, ou seja, para se criar o problema, temos de imediato, já a solução, vemos mais adiante.

As comunicações já estão presentes nos sites dos Consulados, como é o caso do Consulado da Itália em São Paulo.

Aumento da taxa

Outra mudança trazida pelo decreto é o aumento da taxa para o processamento do pedido de reconhecimento da cidadania italiana. Se antes do final do ano o valor para apresentar o pedido via Consulado estava em 300 euros, agora passou para 600 euros e especula-se um aumento para 700 euros.

Cidadania por casamento

O decreto não altera diretamente as regras de cidadania por casamento. Ele foca exclusivamente no ius sanguinis e nas condições de transmissão por descendência.

Não há menção a mudanças nos prazos (ex.: 3 anos de casamento fora da Itália ou 2 anos na Itália), no requisito de proficiência em italiano (B1) ou na introdução de obrigatoriedade de residência na Itália para cônjuges.

Qualquer proposta nesse sentido mencionada por Tajani (como residência obrigatória) ainda não foi incorporada a este decreto e pode estar em discussão para futura legislação.

Por que este decreto agora?

O aumento dos pedidos de reconhecimento nos últimos dez anos, especialmente nos últimos cinco anos, é notório, bem como a incompetência e o desinteresse do governo italiano em lidar de frente com a questão no intuito de resolver o problema na sua raiz.

Não é coincidência que o alvo de Tajani sejam justamente Brasil e Argentina e suas “agências”, que na verdade somente existem por conta de um serviço mal prestado pelas representações diplomáticas, somado a um volume enorme de pessoas que não consegue ter seus anseios respondidos pelos canais oficiais. Somente há oferta para aquilo que tem demanda.

Depois de anos e anos de esperas infindáveis em filas consulares, os requerentes buscaram soluções como (i) o processo administrativo na Itália (que não é barato) e mais recentemente, (ii) os processos judiciais, ambos escancarando a incompetência estatal italiana para atender uma legislação existente desde 1912 e aprimorada em 1992.

Não por menos, o Estado Italiano perdeu e continua perdendo os processos contra as filas nos consulados, onde as pessoas devem esperar dez anos para serem chamadas e terem seu direito reconhecido.

Ocorre que esse volume trouxe trabalho aos Tribunais: A estatística é alarmante: até 30 de agosto de 2024, o tribunal de Veneza, por exemplo, havia acumulado mais de 23 mil processos, com 18 mil pendentes de tramitação. O Vêneto, reconhecido como a primeira região de emigração italiana no século XIX, concentra 43% dos pedidos de cidadania ius sanguinis de toda a Itália.

A magistratura é notadamente reconhecida por ser articulada politicamente, somada à pressão dos últimos anos, e uma campanhanha de mídia para garantir apoio popular para a matéria, a receita estava pronta e bastava colocar no forno.

Assim, Antonio Tajani atende aos magistrados sobrecarregados de darem sentenças procedentes aos requerentes italianos nascidos no exterior, alivia os consulados sem estrutura à altura para atender a demanda e busca o fazer suprimindo um direito já presente. Novamente, destruir é muito mais fácil que construir.

Possíveis enfrentamentos ao Decreto Tajani

O reconhecimento da cidadania italiana tem este nome por uma razão técnica: o requerente é cidadão italiano quando nasce, sendo o processo administrativo ou judicial apenas meio para validar a premissa de que não houve quebra no que prevê o ordenamento jurídico italiano: é italiano quem é filho de italiano.

Tecnicamente, essa esse reconhecimento é chamado de acertamento di riconoscimento del possesso ininterrotto della cittadinanza italiana iure sanguinis ou em português, averiguação de reconhecimento da posse ininterrupta da cidadania italiana por direito de sangue (iure sanguinis).

Dito isso, todos que nasceram até ontem estavam albergados pela legislação que regia os fatos jurídicos acontecidos sob os efeitos dela.

Portanto, a medida é claramente inconstitucional e deverá ser barrada na Justiça mesmo se aprovada pelo legislativo italiano por querer fazer valer lei material no tempo passado, alterando direito já adquido e a própria Suprema Corte Italiana já declarou que a irretroatividade é um princípio fundamental da civilização jurídica. Estamos falando do julgamento Corte di Cassazione, Sez. 1, Sentenza n. 5518 del 01/03/2024 (Rv. 670470-01).

Outra razão para a proposta ser considerada inconstitucional é o real motivo de urgência que justifica a construção de um decreto sobre este tema que é tão delicado de deveria ser debatido com mais profundidade previamente a qualquer mudança, além de ter um período de transição.

Vale lembrar que a Suprema Corte Italiana para matéria legal é a chamada Corte de Cassazione, de modo que para que este tema seja enfrentado novamente pela Corte, demorará alguns anos.

O que fazer agora?

Inicialmente, vale reforçar que quem já tinha protocolado o pedido antes da publicação do decreto não precisa sequer se preocupar com ele, ao menos não por si, mas talvez pela italianidade como um todo.

Independentemente disso, recomendamos que etapas preparatórias como buscas de certidões e retificação de documentos continuem em andamento se já iniciadas, não sendo dado sequência apenas para traduções, apostilamentos, planejamentos de viagens, etc.

Posto isso, vamos aos casos nos quais você pode estar em vias de preparação para apresentar o pedido:

Processo Administrativo

Se o seu caso é pela via administrativa, realmente as notícias não são boas. No mínimo os seus planos ficarão suspensos pelos 60 dias até a votação da conversão do decreto em lei ou não e, como provavelmente será, somente em alguns anos (com uma decisão da Suprema Corte), esse decreto será declarado inconstitucional e as coisas serão revistas.

Provavelmente você, que sequer pensava em processo judicial, terá que pensar nesta hipótese justamente por conta das limitações trazidas pelo decreto-lei.

Para quem estava prestes a transcrever certidões de nascimento de filhos menores, temos também um período de paralização caso estes filhos menores não sejam filhos de pais ou ou avós nascidos em território italiano.

Processo Judicial

Se você está preparando os documentos para propor uma ação judicial, seja contra as filas nos Consulados que existiam até o dia 28 de março, seja pela via materna, esse decreto-lei é apenas mais um argumento a ser usado no processo.

Sendo assim, é algo a ser visto com seu advogado contratado como lidar em relação à inclusão desta tese adicionalmente no processo, mas o direito de bater às portas do Judiciário continua intocado.

Quem é Antonio Tajani

Antonio Tajani é uma figura proeminente na política italiana e europeia, com uma longa carreira pública que abrange décadas. Nascido em 4 de agosto de 1953, em Roma, ele é formado em Direito pela Universidade de Roma “La Sapienza” e começou sua trajetória como jornalista, trabalhando para veículos como o jornal Il Giornale. Sua entrada na política ocorreu nos anos 1990, quando se aproximou de Silvio Berlusconi, tornando-se um dos fundadores do partido Forza Italia em 1994, que representa uma visão de centro-direita e pró-europeia.

Carreira Pública:

  • Parlamento Europeu: Tajani foi eleito eurodeputado em 1994, cargo que ocupou em várias legislaturas. Ele se destacou como uma voz influente no Parlamento Europeu, sendo eleito presidente da instituição de 2017 a 2019, o que o tornou um dos políticos italianos mais reconhecidos no cenário internacional.
  • Comissão Europeia: Entre 2008 e 2014, serviu como Comissário Europeu, inicialmente para Transportes (2008-2010) e depois para Indústria e Empreendedorismo (2010-2014), sob a presidência de José Manuel Barroso. Durante esse período, focou em políticas de integração econômica e desenvolvimento industrial.
  • Política Italiana: Após retornar à política nacional, Tajani assumiu a liderança do Forza Italia em 2018, após Berlusconi ser temporariamente afastado por questões legais. Desde outubro de 2022, é Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Relações Exteriores da Itália no governo de Giorgia Meloni, cargo no qual tem lidado com questões de política externa e cidadania.

 
 

 

 

Ainda com dúvidas se possui direito ou não?

Agende uma reunião conosco

Back To Top