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RAI: A corrida pelo passaporte italiano
A emissora estatal italiana Rai exibiu recentemente duas reportagens que abordam o crescimento significativo dos pedidos de cidadania italiana por direito de sangue (iure sanguinis), e do passaporte italiano, com foco especial nos descendentes de italianos no Brasil.
Essas matérias, veiculadas em 3 de março, têm provocado discussões por enfatizarem principalmente os aspectos burocráticos e administrativos do fenômeno, bem como suas implicações econômicas, deixando de lado as importantes dimensões culturais e sociais da italianidade, especialmente nos estados do centro-sul do Brasil, onde a herança italiana ainda é muito presente.
A Rai sugere que muitos requerentes buscam a cidadania italiana principalmente para facilitar a mobilidade internacional e o acesso ao mercado europeu, o que tem impulsionado um mercado de serviços especializados em assessoria para o reconhecimento da cidadania.
O Direito de Sangue e a Conexão Histórica
A RAI destaca que tudo começa com a Lei 91/1992 que concede o direito de reconhecimento da cidadania a qualquer pessoa que prove descendência de um cidadão italiano, sem limite de gerações, bastando identificar o ancestral e reunir os documentos necessários.
Esse direito reflete a história de forte emigração italiana para a América do Sul, especialmente entre o final do século XIX e início do XX, quando milhões de italianos cruzaram o Atlântico em busca de uma vida melhor.
Hoje, seus descendentes — cerca de 32 milhões só no Brasil, de um total de 80 milhões no mundo — estão voltando seus olhos para a terra dos bisavós, movidos por nostalgia ou pela chance de viver na Europa.
Dados Relevantes:
• Estima-se que existam 80 milhões de descendentes de italianos no mundo, dos quais 32 milhões estão no Brasil.
• Em Forno di Zoldo, uma pequena cidade de 3.000 habitantes, há mais de 700 solicitações de cidadania em andamento.
• Nos últimos 4 anos, cerca de 600.000 pedidos de cidadania foram protocolados.
• O mercado de assessoria para reconhecimento de cidadania movimenta aproximadamente 3 bilhões de euros.
• No Tribunal de Veneza, 80% dos processos de contencioso estão relacionados à cidadania iure sanguinis.

Passaporte italiano: um processo complexo
Obter a cidadania italiana não é tarefa simples. É preciso reconstruir a árvore genealógica, encontrar certidões de nascimento, casamento e óbito em cartórios brasileiros (e, muitas vezes, buscar registros em pequenos comunes italianas). Documentos do século XIX, como os de Forno di Zoldo, na província de Belluno, podem estar em arquivos empoeirados ou até em registros paroquiais anteriores à unificação da Itália.
O Boom do “Negócio da Cidadania Italiana”
A RAI diz que assim nasceu um “mercado bilionário”. Agências de cidadania, que cobram em média €5.000 por prática, transformaram o jure sanguinis em um negócio lucrativo (sempre bom lembrar que receita não é lucro, mas isso são outros quinhentos, não é mesmo?).
Nos últimos quatro anos, cerca de 600 mil processos foram iniciados, gerando uma receita estimada em 3 bilhões de euros. Essas empresas promovem seus serviços em redes sociais, organizam eventos temáticos oferencendo a cidadania como um mero passaporte/produto e até oferecem pacotes completos como se a cidadania fosse brinde dentro de uma viagem de férias. O que era um direito virou uma indústria e a RAI faz questão de explorar esse aspecto de “cidadania fast-food”.
Sobrecarga nos Comunes Italianos
O impacto vai além do Brasil. Pequenos municípios italianos, como Forno di Zoldo — uma cidade de apenas 3 mil habitantes —, enfrentam uma avalanche de pedidos. Lá, 700 solicitações de cidadania aguardam processamento, forçando a prefeitura a reduzir serviços locais para priorizar as transcrições de documentos de descendentes sul-americanos.
Prefeitos se veem cobrados por advogados que ameaçam recorrer ao Tribunal Administrativo Regional (TAR) caso os prazos não sejam cumpridos, ou seja, o gargalo saiu dos consulado e foi transferido para os comunes por outra ponta e como diz o ditado popular: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Um Jogo Político
A cidadania italiana também tem peso político. Os 32 milhões de descendentes no Brasil representam um “pool de votos” cobiçado por movimentos como o MAIE (Movimento Associativo Italianos no Exterior), que elegeu três parlamentares nas últimas eleições, sendo o partido mais votado na América do Sul. No entanto, o MAIE e seus patronatos, que deveriam oferecer serviços gratuitos de orientação, também entraram no jogo comercial, cobrando até €4.000 por prática. O que deveria ser um serviço virou clientelismo.
Questões Éticas e Legais
O sistema, porém, enfrenta críticas. Tribunais italianos, como o de Veneza, onde 80% das disputas envolvem cidadania jure sanguinis, raramente rejeitam pedidos, mesmo com pouca verificação da autenticidade dos documentos — uma responsabilidade que recai sobre o Ministério do Interior, mas que não é exercida.
Em Bolonha, a questão chegou à Corte Constitucional, levantando um debate: é justo conceder cidadania a quem não fala italiano, nunca pisou na Itália e desconhece até o nome do presidente ou cidades famosas como Nápoles? Ou seja, o poder judicial está querendo criar condição não prevista em lei para diminuir o trabalho, novamente efeitos colaterais da escassez de recursos materiais.
Cidadania Italiana: Um Direito ou Uma Oportunidade?
Ainda de acordo com a RAI, acorrida pelo passaporte italiano reflete um misto de saudade das raízes e pragmatismo. Para muitos brasileiros, é a chance de escapar de crises econômicas ou acessar os benefícios da União Europeia e coloca a dúvida: a cidadania jure sanguinis é um direito genuíno ou uma oportunidade explorada por interesses comerciais e políticos?
Críticas e Contrapontos:
A abordagem da Rai tem sido criticada por não considerar adequadamente a riqueza cultural e histórica que fundamenta o direito à cidadania italiana. No Brasil, especialmente nos estados do Sul e Sudeste, as influências italianas são evidentes em diversos aspectos da vida cotidiana, como festividades, gastronomia e tradições.
Líderes comunitários e descendentes de italianos no Brasil argumentam que o reconhecimento iure sanguinis vai além de questões burocráticas ou econômicas, representando um direito baseado em uma identidade cultural profundamente enraizada. Eles defendem uma abordagem mais equilibrada na mídia italiana, que reconheça a importância histórica e emocional desse vínculo, ampliando o debate para além das dificuldades administrativas enfrentadas pelos municípios italianos.
O debate continua, com questionamentos sobre possíveis mudanças nas leis de cidadania e como o governo italiano pode equilibrar o controle burocrático com o respeito aos direitos dos descendentes de italianos, especialmente na América do Sul.
Conclusão
O fenômeno da cidadania italiana no Brasil é um espelho da globalização e da história migratória. Ele conecta passado e presente, mas também expõe fissuras — da falta de preparo institucional à mercantilização de um direito. Enquanto as filas crescem em São Paulo e os registros se acumulam em Forno di Zoldo, o sonho do passaporte europeu segue movendo vidas, entre a nostalgia de um antepassado italiano e a promessa de um futuro melhor.
E você, qual a sua sugestão para tentar diminuir as filas?